sexta-feira, 1 de julho de 2011

Marcha dxs Galdérixs - I

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No passado Sábado teve lugar, em Lisboa, a primeira SlutWalk Portuguesa. Podem questionar-se sobre o porquê de vir falar disto aqui, num blog sobre poliamor – considero o assunto particularmente relevante na medida em que, dentro do poliamor que está envolvido com aquilo que é conhecido como “promiscuidade” ou simplesmente não-monogamia, as pessoas poliamorosas são também, por definição, sluts. Interessa muito pouco, de resto, para as representações estereotipadas, que muitas pessoas pratiquem até formas de poliamor que nada tenham de não-monogâmico (no que toca a práticas sexuais) ou sequer de sexual – a promiscuidade, ou a galderice, a sluttiness não se encontra nas práticas específicas, mas sim na representação dessas práticas, na sua constituição como desvio face a um padrão. Padrão esse que, obviamente, não deixa de ser idealizado – não aconselho a ninguém pôr as mãos no fogo pela “pureza” sexual dos homens que o discurso patriarcal elogia e protege ou entroniza. A luta da SlutWalk não é tanto por formas específicas de vestir ou comportar, mas pelo fim de um padrão duplo, que diferencia entre o sujeito-mulher e o sujeito-homem. Pelo fim da violência de género (e, dentro desta, especificamente, pela violência sexual) que é constituída por este mesmo duplo padrão.



Duas coisas saltam à vista, na SlutWalk Lisboa, e que nos devem levar a reflectir profundamente sobre temas que ultrapassam até o âmbito da marcha em si:
1 – a fraquíssima comparência, face a marchas em vários outros países, e que não pode ser explicada (apenas) por diferenças na densidade populacional nas cidades anfitriãs de várias outras Marchas ao redor do Mundo;
2 – os ataques imparáveis, prévios e posteriores, nacionais e internacionais, ao conceito da marcha, ao que ela defende, à sua forma de execução; que vêm não apenas da ala tipicamente patriarcal, mas também, e especialmente, de várias alas de alguns feminismos.

Quanto ao primeiro ponto: não estou profundamente por dentro da forma como as marchas noutras cidades foram organizadas, embora esteja por dentro da forma como a marcha de Lisboa foi organizada (profundamente ou não, já não me sinto capaz de dizer). Porém, do que sei e do que li de outras marchas (e que, inclusivamente, constituiu um dos pontos de crítica), boa parte das organizações foram feitas fora dos típicos círculos de activismo feminista, foram feitas de forma extremamente descentralizada, pelo passa-palavra e por pessoas que, à partida, não iriam organizar uma marcha (algo semelhante à forma como o movimento da manifestação de 12 de Março começou).
Em Lisboa, o mesmo não é verdade. O movimento começou a organizar-se da forma menos hierárquica e autoritária que é possível executar dentro das limitações da Internet – e nisso foi um exemplo brilhante de organização pluralista, preocupada com a representação dos vários cruzamentos de realidades de discriminação e violência, um exemplo de variedade e argumentação feita entre pessoas, com respeito e consideração, de uma forma que é, ao mesmo tempo, enternecedora e rara. Ainda assim, e obviamente, houve um fórum de eleição (poderá não haver, sequer?) principalmente dominado por pessoas feministas (mulheres, outros géneros e homens, inclusive) e activistas. Que isto não constitua, de todo, uma crítica negativa! Este trabalho é fundamental, necessário. Mas não deixa de levantar questões: será que este pendor activista, académico (ao contrário do que circulava pelas más línguas, muitas das pessoas envolvidas têm efectivamente cursos superiores e/ou longos anos de activismo e de pensamento sobre questões relacionadas com o feminismo e outras áreas conexas) poderá ter afastado pessoas da marcha? Será que a SlutWalk lisboeta sofreu de um certo efeito de alergia externa a esta clara ligação com o activismo feminista em Portugal? O que afastou, afinal de contas, tanta gente desta marcha, e porque não conseguiu ela atrair a atenção daquele segmento da população que, tal como nos outros países, até foge do feminismo mas se conseguiu organizar em torno desta causa específica?
Sem dúvida que Portugal está especialmente atrasado face a questões de activismo político, de feminismo (do peso que a palavra comporta e, até, do quão ignorante o ‘cidadão comum’ parece ser sobre o que é o feminismo – ou o que são os feminismos, na verdade). Mas estará assim tão atrasado, será a diferença assim tão grande que nos outros países ela tenha sido grandemente anulada nos outros países mas não aqui? Honestamente, parece-me uma explicação por demais simplista, que reduz a um factor apenas (mau-grado ser este um factor complexo) esta diferença. É possível que se tenha assistido a um acidental “fechamento” sobre a comunidade activista, não um fechamento planeado ou sequer desejado, não um fechamento intencional, ou que sirva sequer para apontar dedos a seja quem for (volto a dizer, a organização do evento foi do mais horizontal que se consegue arranjar!), mas ainda assim um fechamento. As ‘mesmas’ ideias circularam pelas mesmas pessoas e a organização/dinamização do evento poderá ter-se transformado num discurso de dentro para dentro. No entanto, isto é apenas uma possível análise ou antes, uma hipótese – não estou sequer certo de ter razão, mas gostaria de deixar lançada a discussão, que acho absolutamente fundamental.
Um ponto secundário a este foi um certo processo de ‘invenção da roda’ – não houve, a um nível significativo, intercâmbio de experiências e inputs entre as várias organizações das várias marchas a nível internacional e a organização da Marcha de Lisboa – por conseguinte, arriscamo-nos a que muito do trabalho feito tenha sido um trabalho de re-criação ao invés de um trabalho de acumulação e refinamento das experiências passadas, que poderá eventualmente ter significado um empobrecimento parcial das reflexões e atitudes tidas durante todo este tempo – ou, dito de outra forma, um não-enriquecimento extra dessas mesmas reflexões e atitudes, em que se perde o contexto e trabalho previamente levado a cabo. Repito – isto não pretende ser uma crítica negativa à organização ou ao movimento, mas um momento (pessoal) de debriefing, de olhar para os resultados e para o processo retrospectivamente, reflexivamente, e procurar pontos a melhorar.

E, porque o texto já vai longo, o resto fica para a semana…

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